quinta-feira 17 2025

Dostoiévski e a crítica existencial ao socialismo: o preço da utopia


Fiódor Dostoiévski, romancista russo do século XIX, é conhecido por mergulhar nas profundezas da alma humana. Sua crítica ao socialismo não parte da economia ou da política em si, mas de algo mais radical: a negação da liberdade interior do ser humano. Para Dostoiévski, o problema do socialismo não é apenas o seu projeto político, mas o tipo de homem que ele tenta construir — e o que ele está disposto a destruir no caminho.

Em obras como Os Demônios e Notas do Subterrâneo, o autor denuncia o espírito revolucionário que animava certos círculos socialistas russos de sua época. Para ele, o socialismo moderno é uma tentativa de engenharia da alma humana, onde tudo deve ser submetido à lógica da igualdade absoluta, do controle racional da sociedade e da extinção do sofrimento. No entanto, esse projeto utópico, segundo Dostoiévski, carrega em si uma negação da essência do ser humano: o livre-arbítrio, o desejo, o erro, a transcendência.

Em Notas do Subterrâneo (1864), ele escreve, com ironia e acidez, sobre a visão científica e determinista do homem que os socialistas alimentavam:

"Dizem que o homem faz tudo por interesse próprio. Mas... e se ele quiser fazer algo contra o seu próprio interesse, só para provar que é livre?"
Essa frase sintetiza seu incômodo: o socialismo constrói um mundo onde o homem deixa de ser um ser moral e espiritual para se tornar uma engrenagem previsível da sociedade ideal.

Dostoiévski percebia que os idealistas revolucionários — muitos dos quais influenciados por Marx e seus contemporâneos — estavam dispostos a abolir Deus, a tradição, a liberdade e até o sofrimento, para alcançar o paraíso terrestre. Mas ao fazer isso, eles, segundo ele, matam a alma humana. Em Os Demônios (1872), ele mostra como jovens idealistas, seduzidos por ideologias totalizantes, acabam mergulhados em violência, cinismo e desespero. O romance é, ao mesmo tempo, uma tragédia e uma profecia do que viria a ser o século XX.

Para Dostoiévski, sem Deus, tudo é permitido — essa máxima, atribuída ao personagem Ivan Karamázov, é o núcleo de sua crítica. O socialismo, ao tentar substituir a religião por uma nova moralidade laica e igualitária, cria um vazio espiritual. O homem se torna apenas um ser econômico, social, material — mas não mais uma alma imortal, livre para amar, crer e até sofrer com dignidade. A liberdade, para Dostoievski, é mais valiosa do que qualquer promessa de igualdade ou conforto.

Sua visão contrasta frontalmente com a do marxismo. Enquanto Marx vê a história como uma luta de classes que culminará em uma sociedade sem exploração, Dostoiévski vê a história como uma luta entre o bem e o mal no coração humano, algo que não pode ser resolvido por sistemas ou estruturas, mas apenas por uma conversão interior. Em vez de uma revolução social, ele aposta em uma redenção espiritual.

É por isso que sua crítica ao socialismo é tão profunda e inquietante: não se trata apenas de discordar de suas propostas econômicas, mas de alertar que, ao tentar salvar a humanidade pela força das ideias, o socialismo pode acabar esmagando aquilo que nos faz humanos. Em nome do bem coletivo, sacrifica-se o indivíduo; em nome da paz, cria-se o controle; em nome da justiça, destrói-se a misericórdia.

Mais de um século depois, a advertência de Dostoiévski continua atual: nenhuma utopia política pode substituir a complexidade da alma humana. A tentativa de construir o céu na terra, se feita à custa da liberdade interior, corre o risco de nos entregar um novo tipo de inferno.


Referências 

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Notas do Subterrâneo. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2009.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Demônios. Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamázov. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2011.

FRANCO, Afonso Arinos de Melo. O Homem e a Revolução em Dostoiévski. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954.

PIPES, Richard. Russia under the Old Regime. New York: Penguin Books, 1990.

BERDIAEV, Nicolas. O Espírito da Revolução. São Paulo: É Realizações, 2014. (Obra original: 1937)

FRANK, Joseph. Dostoevsky: A Writer in His Time. Princeton: Princeton University Press, 2010.

A Revolução Russa: o colapso de um império e o nascimento de uma nova ordem

 

A Revolução Russa de 1917 não foi apenas um episódio de ruptura política, mas um marco na história mundial. Ela deu fim ao regime czarista e iniciou a experiência socialista mais influente do século XX, afetando não apenas o destino da Rússia, mas também os rumos da política global. Sua complexidade exige uma análise que vá além da narrativa de “boas intenções revolucionárias”, incorporando a longa duração, as contradições sociais e o peso das escolhas humanas em meio ao caos.

O estopim de um sistema falido

O Império Russo, sob o comando da dinastia Romanov, mantinha-se preso a uma estrutura autoritária, patrimonialista e profundamente desigual, mesmo diante das transformações que já alcançavam a Europa Ocidental desde o século XIX. O czar Nicolau II, último representante do absolutismo russo, assumiu o trono em 1894 e demonstrou grande dificuldade em lidar com os desafios do seu tempo: industrialização tardia, tensões sociais crescentes, movimentos revolucionários e uma guerra desastrosa.

De acordo com o historiador conservador Richard Pipes, a derrocada do regime czarista “não foi inevitável, mas resultado direto da incompetência e indecisão de Nicolau II diante das crises” (PIPES, 1990, p. 57). Sua insistência em governar por direito divino e sua recusa em dividir o poder com instituições representativas impediram qualquer possibilidade de reforma gradual. Mesmo após a Revolução de 1905 e a criação da Duma (parlamento russo), o czar manteve o controle centralizado, anulando a eficácia dessa tentativa de modernização política.

Do ponto de vista da historiografia marxista, a crise do czarismo refletia as contradições estruturais do modo de produção russo, que combinava formas feudais com elementos de um capitalismo industrial emergente. Segundo E. H. Carr, "o Império Russo, com sua aristocracia latifundiária e massa camponesa submetida, era um anacronismo histórico no contexto do capitalismo europeu" (CARR, 1980, p. 45). Essa combinação gerava tensões insustentáveis: a nobreza desejava manter seus privilégios, enquanto operários e camponeses exigiam melhores condições de vida.

Já a Escola dos Annales, por meio da noção de longa duração, ajuda a compreender o peso das estruturas herdadas. Fernand Braudel, por exemplo, observa que “a sociedade russa era, no início do século XX, ainda fortemente marcada pelas estruturas do Antigo Regime — uma economia rural, relações clientelistas e um Estado centralizador com traços patrimoniais” (BRAUDEL, 1981, p. 40). Isso significa que a revolução não surgiu do nada: foi resultado de pressões acumuladas por séculos.

A Nova História, por sua vez, lança luz sobre as experiências e vozes das pessoas comuns. Para a historiadora Sheila Fitzpatrick, “o descontentamento popular não era apenas uma questão ideológica, mas visceral: fome, exploração, repressão e falta de perspectivas uniam os camponeses analfabetos dos campos aos operários das fábricas de Petrogrado” (FITZPATRICK, 2008, p. 21). O Estado imperial, longe de ser uma entidade moderna e eficiente, era percebido como um obstáculo à sobrevivência.

A Primeira Guerra Mundial (1914–1918) serviu como catalisador do colapso. A Rússia entrou no conflito com uma estrutura logística precária, falta de equipamentos e soldados mal treinados. A derrota humilhante frente à Alemanha, combinada à escassez de alimentos nas cidades e inflação galopante, fez com que o apoio popular ao czarismo evaporasse. A guerra revelou, em última instância, a falência do Estado imperial russo, incapaz de proteger seu povo ou de se adaptar à modernidade.

Assim, o estopim da Revolução Russa não pode ser atribuído a um único fator ou momento, mas a um acúmulo de fragilidades históricas. O modelo autocrático, alicerçado na tradição, na repressão e no medo, encontrou seu limite diante de uma sociedade que já não suportava mais as condições de existência. Como lembra Leon Trotsky, “os regimes caem quando se tornam insuportáveis, mesmo aos olhos daqueles que antes os sustentavam” (TROTSKY, 1932, p. 11).

Duas revoluções em um ano

Em fevereiro de 1917 (março no calendário ocidental), uma série de greves e revoltas populares derrubou o czar. Um governo provisório assumiu, liderado por liberais e moderados, mas incapaz de resolver os problemas centrais: a fome, a guerra e a distribuição de terra. Foi nesse vácuo de poder que os sovietes — conselhos de trabalhadores, soldados e camponeses — começaram a se destacar.

Em outubro (novembro no calendário ocidental), os bolcheviques, liderados por Lenin, tomaram o poder com a promessa de “paz, terra e pão”. Para o historiador marxista Eric Hobsbawm, “a Revolução de Outubro foi um divisor de águas, o primeiro grande ensaio prático da teoria marxista em escala nacional” (HOBSBAWM, 1995, p. 60).

Ruptura ou continuidade?

A Revolução Russa de 1917 é frequentemente lembrada como um dos maiores marcos de ruptura política e ideológica do século XX. No entanto, diversos historiadores problematizam essa ideia de ruptura total, destacando que mudanças radicais nem sempre eliminam as estruturas anteriores de forma imediata. A história, nesse sentido, não é feita apenas de eventos espetaculares, mas de processos complexos, camadas de permanência e movimentos contraditórios.

A Escola dos Annales, que revolucionou a historiografia no século XX, propôs um olhar atento às estruturas de longa duração – aquelas instituições, mentalidades e práticas que resistem às transformações rápidas. Nesse espírito, Fernand Braudel afirma que, mesmo em momentos de revolução, elementos estruturais permanecem. No caso da Rússia, ele observa que “a base camponesa, a economia agrária e as formas de autoridade centralizadas resistiram à mudança, mesmo sob o novo regime” (BRAUDEL, 1981, p. 38). Assim, apesar da retórica socialista e da derrubada do czarismo, muitas formas de dominação – como o centralismo, o autoritarismo e a dependência do campo – se mantiveram sob outra roupagem, como o Estado soviético centralizado e dirigido por um partido único.

Essa leitura encontra eco em Alexander Gerschenkron, historiador especializado em economia russa, que analisou o desenvolvimento desigual do país. Para ele, a industrialização forçada sob os bolcheviques não rompeu com o passado autoritário, mas adaptou velhas formas de coerção a novos fins políticos e econômicos. Isso reforça a tese de que a revolução foi tanto uma transformação quanto uma continuidade de práticas autocráticas sob um novo nome.

Por outro lado, a Nova História, especialmente em sua vertente social e cultural, questiona os discursos totalizantes e heroicos da Revolução. Para Sheila Fitzpatrick, a Revolução de 1917 não pode ser reduzida às figuras de Lenin ou Trotsky, nem às estratégias do Partido Bolchevique. Ao invés disso, ela propõe uma leitura a partir das experiências populares. “Não houve apenas um Lenin e seus planos, mas milhares de trabalhadores e camponeses que moldaram a revolução com seus próprios desejos e esperanças” (FITZPATRICK, 2008, p. 14). Esses agentes comuns, muitas vezes esquecidos nas narrativas oficiais, também agiram, se revoltaram, improvisaram e deram à Revolução significados próprios — nem sempre alinhados com o projeto marxista-leninista.

Essa abordagem conecta-se com os estudos da historiografia marxista britânica, como os de E. P. Thompson, que valorizam a agência das classes subalternas. Embora Thompson tenha se concentrado na Inglaterra, sua metodologia inspira uma leitura da Revolução Russa como um processo contraditório, dialético, não controlado inteiramente pela vanguarda do partido. Isso nos leva a perceber a Revolução como campo de disputas, não apenas entre classes, mas entre visões de mundo e projetos de sociedade.

Já os historiadores conservadores, como Orlando Figes, apontam que, apesar das mudanças discursivas e ideológicas, a Revolução Russa produziu formas de repressão política tão severas quanto as do czarismo. Segundo Figes, “o regime bolchevique herdou e até intensificou os mecanismos de controle social, como a censura, o policiamento político e a violência de Estado” (FIGES, 1996, p. 385). Para ele, a continuidade não foi apenas estrutural, mas também moral: o projeto de redenção social se transformou em uma nova forma de opressão.

Portanto, entre rupturas simbólicas e continuidades práticas, a Revolução Russa se revela um evento multifacetado. A ruptura com o czarismo é inegável no plano institucional, mas muitas estruturas de poder, formas de dominação e hábitos sociais sobreviveram à queda do antigo regime. A tensão entre utopia e realidade, entre os planos do partido e as vozes do povo, compõe a riqueza e a complexidade desse processo histórico, cuja memória ainda provoca debates acalorados entre diferentes tradições historiográficas.

As consequências imediatas

Logo após a tomada do poder em outubro de 1917, os bolcheviques, liderados por Lenin, enfrentaram o desafio de consolidar um regime ainda frágil e sem legitimidade universal. A primeira medida de impacto foi o Tratado de Brest-Litovski, assinado com a Alemanha em março de 1918, pelo qual a Rússia se retirava da Primeira Guerra Mundial em troca da perda de vastos territórios. Embora tenha garantido paz temporária, o acordo causou revolta entre nacionalistas e antigos aliados do governo provisório, contribuindo para o início da Guerra Civil Russa.

Internamente, o novo governo empreendeu reformas radicais. Os bancos foram nacionalizados, grandes indústrias foram colocadas sob controle estatal e os latifúndios foram expropriados, promovendo uma redistribuição de terras entre camponeses. Tais medidas visavam destruir as bases do capitalismo e acelerar a construção de uma economia socialista. No entanto, o ideal revolucionário rapidamente deu lugar à necessidade de manutenção do poder a qualquer custo.

A Guerra Civil (1918–1921), travada entre os bolcheviques (o Exército Vermelho) e uma ampla coalizão de adversários (o Exército Branco, formado por monarquistas, liberais, socialistas rivais e potências estrangeiras), mergulhou o país em uma espiral de violência. Nesse contexto, Lenin instituiu o chamado “comunismo de guerra”, política que incluía a requisição forçada de grãos, o racionamento e a centralização total da economia. A consequência foi a fome generalizada, o colapso da produção e a insatisfação popular crescente.

Para garantir o domínio político, os bolcheviques criaram a Cheka, polícia política encarregada de eliminar opositores. O período conhecido como “Terror Vermelho” (1918–1922) ficou marcado por prisões em massa, torturas, execuções sumárias e repressão ideológica. Milhares foram mortos ou deportados sob a acusação de sabotagem ou contrarrevolução, incluindo líderes mencheviques, anarquistas e religiosos. Essa guinada autoritária decepcionou muitos apoiadores iniciais da Revolução, inclusive intelectuais e socialistas de outras correntes.

Para o filósofo conservador Nicolas Berdiaev, que testemunhou e depois foi exilado pelo regime, o projeto revolucionário traiu seus próprios princípios. “A nova ordem revolucionária, em nome da liberdade, instaurou uma nova tirania” (BERDIAEV, 1937, p. 78). Berdiaev via o marxismo leninista não como libertador, mas como uma continuação do messianismo russo em nova roupagem, sacrificando o indivíduo em nome de uma coletividade abstrata e opressora.

Historiadores marxistas mais críticos, como Isaac Deutscher, reconhecem os excessos do período, mas argumentam que a repressão foi uma resposta às circunstâncias extremas da guerra civil e da sabotagem interna, e não uma essência do projeto bolchevique. Para ele, “o leninismo não estava predestinado ao terror; este foi, antes, uma tragédia das circunstâncias” (DEUTSCHER, 1963, p. 215). Já estudiosos liberais, como Richard Pipes, sustentam que a violência foi instrumental e planejada desde o início, sendo o autoritarismo uma marca constitutiva do regime soviético.

Essas interpretações contrastantes demonstram que o período imediato à Revolução Russa foi ambíguo e contraditório: ao mesmo tempo em que buscava justiça social e igualdade, instaurava práticas que negavam liberdades fundamentais. A nova ordem não apenas enfrentou antigos inimigos, mas também instituiu um sistema que perseguia dissidências internas, plantando as sementes de um regime que, mais tarde, floresceria em moldes ainda mais repressivos sob Stalin.

Conclusão

A Revolução Russa foi resultado de uma crise histórica complexa: política, econômica, social e cultural. Ela representou tanto um grito de libertação quanto a semente de novas formas de dominação. Ao contrário de visões maniqueístas, o evento deve ser compreendido como parte de um processo profundo e contraditório, em que estruturas herdadas e decisões humanas colidiram de forma explosiva.

Referências 

BERDIAEV, Nicolas. A origem e o sentido do comunismo russo. São Paulo: É Realizações, 1937.

BRAUDEL, Fernand. Dinâmica do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 1981.

DEUTSCHER, Isaac. O profeta armado: Trotsky, 1879-1921. Rio de Janeiro: Zahar, 1963.

FIGES, Orlando. A tragédia de um povo: a Revolução Russa (1891–1924). São Paulo: Record, 1996.

FITZPATRICK, Sheila. A Revolução Russa. São Paulo: UNESP, 2008.

GERSCHENKRON, Alexander. Economic Backwardness in Historical Perspective. Cambridge: Belknap Press, 1962.

HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

PIPES, Richard. A Revolução Russa. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

TROTSKY, Leon. História da Revolução Russa. São Paulo: Sundermann, 1932.

quarta-feira 16 2025

Antes da Revolução: o cenário que preparou o estouro na Rússia

A Revolução Russa de 1917 foi um dos acontecimentos mais impactantes do século XX, com repercussões políticas e ideológicas que se estenderam por todo o planeta. No entanto, esse processo revolucionário não brotou de forma repentina. A Rússia dos czares já era, há décadas, um barril de pólvora prestes a explodir. O que havia por trás do grito por terra, pão e paz era uma combinação explosiva de autoritarismo, desigualdade, frustração política e falência econômica.

O império czarista: tradição, rigidez e atraso estrutural

Durante séculos, a Rússia foi governada sob um regime absolutista liderado pela dinastia Romanov. No início do século XX, o czar Nicolau II reinava sobre um vasto império que mantinha estruturas medievais, tanto no campo quanto na política. Enquanto as potências europeias modernizavam suas economias e sistemas políticos, a Rússia permanecia agrária e aristocrática.

O historiador marxista Eric Hobsbawm lembra que “a Rússia era uma das grandes potências imperiais do mundo, mas internamente estava presa a estruturas arcaicas, com uma elite nobre controlando o poder e uma massa de camponeses vivendo sob servidão quase feudal” (HOBSBAWM, 1995, p. 76).

O economista e historiador Alexander Gerschenkron argumenta que o atraso econômico da Rússia não era apenas técnico, mas institucional: “a rigidez das instituições czaristas impediu o país de realizar uma transição gradual ao capitalismo, abrindo espaço para soluções extremas” (GERSCHENKRON, 1962, p. 11)

Mesmo com o início tardio da industrialização, as cidades russas — como Moscou e Petrogrado — passaram a concentrar uma classe operária urbana submetida a jornadas exaustivas e condições precárias. Esse proletariado embrionário se tornaria o combustível das greves e revoltas organizadas por sindicatos clandestinos e grupos revolucionários.

Guerras, humilhações e repressão: o caminho para a ebulição

A Guerra Russo-Japonesa (1904–1905) revelou ao mundo e ao próprio povo russo as fragilidades do império. A derrota de uma potência europeia para um país asiático foi um abalo sem precedentes. Isso se somou ao trágico episódio do “Domingo Sangrento”, em 1905, quando soldados czaristas abriram fogo contra manifestantes pacíficos.

Isaiah Berlin, historiador conservador e estudioso da cultura russa, afirma que “a Revolução de 1905 foi um aviso ignorado pela monarquia: um ensaio geral do que viria a acontecer em 1917” (BERLIN, 2006, p. 104). Ainda que o czar tenha criado a Duma, suas limitações práticas mantiveram o caráter autocrático do regime.

Como aponta Richard Pipes (1990), o poder do czar na Rússia não era meramente político: ele possuía um caráter sacral, associado a uma visão religiosa da autoridade. A derrocada do czarismo, portanto, representou mais do que uma transformação política — foi o fim de uma estrutura espiritual que sustentava a identidade coletiva russa. Isso mostra que a crise de 1917 envolveu também uma ruptura simbólica e cultural profunda.

O crescimento das ideias revolucionárias

Em meio à insatisfação, surgiram e se fortaleceram grupos políticos clandestinos, como o Partido Operário Social-Democrata Russo, dividido entre mencheviques e bolcheviques. Lenin, líder destes últimos, defendia uma revolução conduzida por uma vanguarda organizada e decidida.

Outro grupo relevante foi o Partido Socialista Revolucionário, com base camponesa e inclinação para a luta armada. Greves, atentados e protestos tornaram-se parte do cotidiano urbano russo, especialmente nas capitais.

Rosa Luxemburgo, militante e teórica marxista, escreveu que “a situação russa antes de 1917 era uma tempestade prestes a desabar — não por causa de uma conspiração política, mas pela miséria concreta do povo” (LUXEMBURGO, 2001, p. 59).

A Primeira Guerra Mundial e o colapso definitivo

A entrada da Rússia na Primeira Guerra Mundial, em 1914, agravou todos os problemas já existentes. O exército russo, mal treinado e mal equipado, sofreu pesadas derrotas. As baixas se contavam aos milhões. O abastecimento urbano entrou em colapso, a inflação disparou e a fome se espalhou.

O historiador conservador Niall Ferguson observa que “a guerra destruiu a legitimidade do regime czarista não apenas por suas derrotas militares, mas por sua incompetência administrativa e insensibilidade política” (FERGUSON, 2008, p. 184).

A crise culminou na Revolução de Fevereiro de 1917, que depôs o czar e instituiu um governo provisório frágil, que também não resistiria por muito tempo. A instabilidade gerada pavimentaria o caminho para a Revolução de Outubro.

Conclusão

O que aconteceu em 1917 foi a consequência de um processo longo, enraizado em estruturas sociais desiguais, repressão política e frustrações populares. A Revolução Russa não foi obra de um dia nem de um partido, mas o desenlace inevitável de uma crise acumulada durante séculos. Como lembra o historiador Nicolas Werth, “o império dos czares, ao tentar sobreviver pela força, cavou a própria sepultura” (WERTH, 2004, p. 39).


Referências

BERLIN, Isaiah. Pensadores russos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
FERGUSON, Niall. A guerra do mundo. São Paulo: Planeta, 2008.
GERSCHENKRON, Alexander. Economic Backwardness in Historical Perspective. Cambridge: Harvard University Press, 1962.
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
PIPES, Richard. História concisa da Revolução Russa. Tradução de T. Reis; revisão de tradução por Bruno Gomide e Maria Luiza Brilhante de Brito. Rio de Janeiro: Record, 1997.
LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou revolução?. São Paulo: Centauro, 2001.
WERTH, Nicolas. A história da União Soviética. São Paulo: Editora Ática, 2004.

O fim da Primeira Guerra Mundial e o Tratado de Versalhes: uma paz que plantou a próxima guerra

A Primeira Guerra Mundial chegou ao fim no dia 11 de novembro de 1918, com a assinatura do armistício entre a Alemanha e os Aliados. Mas a guerra, na prática, só terminou no papel alguns meses depois, com a assinatura do Tratado de Versalhes, em 28 de junho de 1919. Mais do que encerrar oficialmente o conflito, esse tratado se tornou um símbolo das dificuldades do pós-guerra e, como muitos historiadores apontam, um dos principais fatores que levariam à Segunda Guerra Mundial.

A exaustão dos impérios

Depois de quatro anos de um conflito brutal e sangrento, os impérios centrais estavam esgotados. A Alemanha ainda tentava resistir com ofensivas no front ocidental, mas suas tropas estavam cansadas, famintas e mal equipadas. No interior, greves e protestos se espalhavam, enquanto a população civil sofria com a escassez de alimentos. Em novembro de 1918, o kaiser Guilherme II abdicou, e foi proclamada a República de Weimar.

Para o historiador Richard J. Evans, “o fim da guerra foi menos uma vitória do que um colapso mútuo, com consequências imprevisíveis para o futuro” (EVANS, 2009, p. 127). As potências vencedoras, no entanto, trataram a Alemanha como única culpada pelo conflito, o que influenciaria fortemente os termos do tratado.

O tratado que prometia paz, mas gerou ressentimento

O Tratado de Versalhes foi elaborado durante a Conferência de Paz de Paris, com forte influência dos chamados “Quatro Grandes”: Georges Clemenceau (França), David Lloyd George (Reino Unido), Woodrow Wilson (EUA) e Vittorio Orlando (Itália). Mas os interesses entre eles nem sempre convergiam. Enquanto Wilson defendia seus famosos “14 pontos” para uma paz justa e duradoura, Clemenceau queria punir severamente a Alemanha.

O resultado foi um tratado duro. A Alemanha foi obrigada a aceitar a responsabilidade exclusiva pela guerra, a chamada cláusula da culpa (Artigo 231), o que muitos alemães consideraram humilhante. Além disso, teve de ceder territórios, como a Alsácia-Lorena, pagar reparações bilionárias, reduzir drasticamente seu exército e desmilitarizar a Renânia.

Segundo o historiador Martin Gilbert, “o Tratado de Versalhes foi mais do que uma punição: foi um trauma nacional que afetaria profundamente a psique alemã” (GILBERT, 2004, p. 213). De fato, os sentimentos de humilhação e revolta alimentaram os discursos radicais que surgiriam anos depois, como o do nazismo.

Paz sem reconciliação

Embora o tratado encerrasse oficialmente a guerra, ele não trouxe estabilidade. Pelo contrário, redesenhou o mapa da Europa de maneira apressada, desconsiderando muitas vezes as realidades étnicas e culturais locais. Novos países surgiram, como a Tchecoslováquia e a Iugoslávia, enquanto antigos impérios, como o Austro-Húngaro e o Otomano, desapareceram.

O historiador Eric Hobsbawm observa que “a paz de 1919 não foi a paz dos povos, mas a dos vencedores, e isso se refletiu nas tensões e conflitos que não tardariam a explodir” (HOBSBAWM, 1995, p. 92).

O prenúncio de um novo conflito

Ao invés de resolver os problemas que levaram à guerra, o Tratado de Versalhes criou novos. A Alemanha mergulhou numa crise política e econômica profunda, marcada por inflação, instabilidade e descrença nas instituições. O sentimento de revanche se enraizou no imaginário coletivo.

Stéphane Audoin-Rouzeau afirma que “Versalhes não enterrou a guerra — apenas a congelou sob uma frágil camada de legalidade internacional” (AUDOIN-ROUZEAU, 2008, p. 301). Em menos de vinte anos, essa paz precária seria rompida de maneira brutal.

Conclusão

O Tratado de Versalhes selou oficialmente o fim da Primeira Guerra Mundial, mas, ao invés de promover uma paz verdadeira, criou um ambiente de ressentimento e instabilidade. Foi uma paz imposta, não negociada. Ao ignorar as complexidades do contexto alemão e ao priorizar punições em vez de reconciliação, os vencedores plantaram as sementes de uma nova guerra — ainda mais devastadora.

Como sintetiza A. J. P. Taylor, “o tratado foi o documento de uma vitória e, como toda vitória absoluta, continha em si as injustiças e os erros de quem não precisa ceder” (TAYLOR, 1990, p. 178).


Referências

  • AUDOIN-ROUZEAU, Stéphane. Combater, matar, morrer: a Primeira Guerra Mundial. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

  • CLARK, Christopher. Os Sonâmbulos: Como a Europa foi à guerra em 1914. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

  • EVANS, Richard J. O Terceiro Reich em Guerra. São Paulo: Planeta, 2009.

  • GILBERT, Martin. A Primeira Guerra Mundial: uma história completa. São Paulo: Ediouro, 2004.

  • HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

  • TAYLOR, A. J. P. As Origens da Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Perspectiva, 1990.

As Fases da Primeira Guerra Mundial


Quando se fala da Primeira Guerra Mundial, é comum imaginar apenas trincheiras enlameadas, explosões incessantes e milhões de mortos. Mas essa guerra, que mudou para sempre o destino do século XX, passou por fases muito distintas — da expectativa de uma vitória gloriosa à dolorosa realidade de um conflito longo, brutal e sem sentido claro. Compreender essas fases é essencial para entender como um evento pontual — o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando em 1914 — se transformou numa tragédia continental.

Primeira fase (1914): A guerra de movimento e a ilusão da vitória rápida

O início do conflito foi marcado pelo que os historiadores chamam de "guerra de movimento". Havia um entusiasmo generalizado entre as populações europeias. Jovens corriam aos postos de alistamento movidos pelo patriotismo, enquanto políticos e militares apostavam em uma vitória rápida. A Alemanha, por exemplo, colocou em prática o Plano Schlieffen, que previa invadir a França passando pela Bélgica neutra, acreditando que derrotaria os franceses em semanas.

Como explica o historiador Martin Gilbert, "os líderes europeus estavam presos à ideia de que a guerra seria breve, como as campanhas do século XIX. Mas subestimaram a escala da destruição que a tecnologia moderna poderia causar" (GILBERT, 2004, p. 22).

Do outro lado, a Rússia mobilizava-se rapidamente, pressionando a Alemanha por dois flancos. O que parecia uma questão de meses logo revelou-se o início de um pesadelo.

Segunda fase (1915–1916): A guerra de trincheiras e o impasse sangrento

Quando a rápida vitória falhou, os exércitos cavaram posições fixas, dando início à guerra de trincheiras. No fronte ocidental, uma linha contínua de trincheiras se estendeu do Mar do Norte à Suíça. Milhões de soldados passaram anos em condições desumanas, enfrentando frio, doenças, ratos, medo constante e o barulho ensurdecedor da artilharia.

A Batalha de Verdun (1916) e a Batalha do Somme (1916) se tornaram símbolos da brutalidade e da futilidade desse período. "A guerra havia se tornado uma máquina de moer carne humana", escreveu o historiador Eric Hobsbawm (1995, p. 35).

Além disso, o uso de armas químicas, como o gás mostarda, e o avanço de tecnologias mortíferas como metralhadoras e lança-chamas transformaram os combates em massacres.

A historiadora Margaret MacMillan observa: "A guerra havia ultrapassado a lógica. Ela persistia porque ninguém queria assumir a responsabilidade pela derrota, ainda que isso significasse matar mais milhares" (MACMILLAN, 2014, p. 211).

Terceira fase (1917): A crise interna e a entrada dos Estados Unidos

Em 1917, o cenário mudou radicalmente. Internamente, muitos países estavam à beira do colapso. Na Rússia, a insatisfação com a guerra levou à queda do czar Nicolau II e à Revolução Bolchevique. Com a assinatura do Tratado de Brest-Litovsk, os soviéticos deixaram a guerra.

No mesmo ano, os Estados Unidos romperam sua neutralidade e declararam guerra à Alemanha, após ataques a navios civis por submarinos alemães e a descoberta do Telegrama Zimmermann, que sugeria uma aliança entre Alemanha e México contra os EUA.

Para Christopher Clark, “a entrada dos americanos não apenas trouxe soldados e suprimentos, mas também uma nova visão moral e política sobre o mundo pós-guerra” (CLARK, 2013, p. 460).

A entrada dos EUA reequilibrou o poder militar e deu esperança às potências da Tríplice Entente. Porém, os soldados continuavam morrendo aos milhares, e os civis sofriam com escassez, censura e repressão.

Quarta fase (1918): O colapso dos impérios e o fim do conflito

Em 1918, a guerra chegou ao fim, mas não por uma vitória esmagadora, e sim pelo colapso interno das Potências Centrais. O Império Austro-Húngaro e o Império Otomano estavam desintegrando-se. A Alemanha, ainda tentando uma ofensiva final no ocidente, foi contida e começou a enfrentar greves, fome e rebeliões em casa.

O historiador Richard J. Evans afirma: "O fim da guerra foi menos uma vitória dos Aliados do que o colapso simultâneo de estruturas imperiais que já estavam fragilizadas" (EVANS, 2009, p. 127).

No dia 11 de novembro de 1918, o armistício foi assinado. A guerra havia acabado, mas o mundo que existia antes dela também. Mais de 16 milhões de mortos, dezenas de milhões de feridos e um continente inteiro traumatizado.

Conclusão

A Primeira Guerra Mundial não foi um evento uniforme. Cada fase expôs uma faceta diferente do colapso de um sistema que acreditava no progresso, na razão e na ordem. No fim, a guerra não apenas destruiu cidades e nações, mas também esperanças e certezas.

Para Stéphane Audoin-Rouzeau, “a guerra não terminou em 1918: ela continuou em cada viúva, em cada órfão, em cada ruína, em cada silêncio” (AUDOIN-ROUZEAU, 2008, p. 287).

E como conclui Martin Gilbert, “o legado da Primeira Guerra foi uma herança de amargura, nacionalismo ferido e sede de revanche que preparou o terreno para uma nova tragédia global” (GILBERT, 2004, p. 512).


Referências 

CLARK, Christopher. Os Sonâmbulos: como a Europa foi à guerra em 1914. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

EVANS, Richard J. A busca pela vingança: A Europa na era das guerras, 1815–1914. São Paulo: Planeta, 2009.

GILBERT, Martin. A Primeira Guerra Mundial: Uma história completa. São Paulo: Planeta, 2004.

HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Extremos: O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

MACMILLAN, Margaret. A Guerra que acabou com a paz: O caminho para 1914. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

AUDOIN-ROUZEAU, Stéphane. 14-18: Entender a Grande Guerra. São Paulo: Contexto, 2008.

O Início da Primeira Guerra Mundial


O ano era 1914. As ruas de Paris estavam cheias de cafés, a Alemanha exibia seu avanço industrial, a Inglaterra dominava os mares, e o Império Austro-Húngaro ainda se mostrava como uma monarquia orgulhosa e plural. Em resumo, a Europa vivia um tempo de aparente estabilidade — o que o historiador britânico Eric Hobsbawm chamou de “a era dos impérios” (HOBSBAWM, 1989). Mas bastava observar com mais atenção para perceber que o continente estava tenso, como um campo seco prestes a ser incendiado.

As potências europeias estavam armadas até os dentes. O sistema de alianças — a Tríplice Aliança (Alemanha, Áustria-Hungria e Itália) e a Tríplice Entente (França, Reino Unido e Rússia) — parecia garantir um equilíbrio de forças, mas, na prática, criava um efeito dominó: qualquer conflito localizado poderia arrastar o continente inteiro. Os nacionalismos extremados e o militarismo exacerbado fermentavam em discursos políticos, jornais e universidades. Faltava apenas um estopim. E ele veio.

O Estopim: Sarajevo, 28 de Junho de 1914


O arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono austro-húngaro, foi assassinado em Sarajevo por Gavrilo Princip, membro de um grupo nacionalista sérvio chamado Mão Negra. Era um ato político que refletia o nacionalismo dos Bálcãs e o desejo de libertação dos povos eslavos sob o domínio austro-húngaro.

A resposta foi rápida. A Áustria-Hungria, com apoio da Alemanha, declarou guerra à Sérvia. A Rússia, defensora dos povos eslavos, mobilizou-se. Em poucos dias, o sistema de alianças entrou em ação: Alemanha declarou guerra à Rússia e à França; o Reino Unido respondeu após a invasão alemã à Bélgica.

Uma Guerra Total: A Máquina Quebrada da Civilização

O que parecia ser uma guerra curta — muitos acreditavam que “estariam de volta até o Natal” — transformou-se em um conflito longo, violento e sem precedentes. A Primeira Guerra Mundial mobilizou cerca de 70 milhões de soldados, matou mais de 10 milhões de pessoas e deixou marcas profundas na Europa e no mundo.

A guerra de trincheiras, a introdução de novas tecnologias destrutivas, como o gás mostarda, os tanques e a artilharia pesada, trouxeram à tona a face desumana da modernidade. Como observou o historiador cultural George Mosse, esse foi o momento em que a guerra deixou de ser uma ideia “romântica” e se transformou em “experiência brutal e desmoralizante” (MOSSE, 1990).

O poeta e soldado Wilfred Owen, morto uma semana antes do fim do conflito, captou bem esse espírito em seus versos: “Dulce et decorum est pro patria mori” — morrer pela pátria — era, para ele, uma “velha mentira” (OWEN, 1917).

As Causas Estruturais do Conflito

Diversas escolas historiográficas tentaram compreender as raízes da Grande Guerra.

Para a historiografia marxista, representada por pensadores como Lenin, a guerra foi resultado direto da fase imperialista do capitalismo. A corrida por colônias, mercados e matérias-primas entre as potências europeias teria levado inevitavelmente ao conflito (LENIN, 1916). Hobsbawm, nessa linha, considera a Primeira Guerra como a “falência do sistema liberal-burguês europeu”, incapaz de resolver suas contradições internas sem recorrer à guerra (HOBSBAWM, 1995).

Já a historiografia liberal destaca o fracasso da diplomacia e a má condução das lideranças políticas. Para Paul Kennedy, autor liberal influente, “as rivalidades entre as grandes potências se tornaram irreconciliáveis quando os líderes políticos falharam em acomodar mudanças no equilíbrio de poder” (KENNEDY, 1987).

A historiografia culturalista, por sua vez, investiga os valores da sociedade da época, argumentando que a guerra foi possível porque havia uma aceitação cultural da violência como algo heroico. Segundo Mosse (1990), havia uma glorificação do sacrifício e do corpo masculino como instrumento da pátria, o que facilitou a mobilização e a obediência à guerra.

O “Barril de Pólvora” dos Bálcãs

Os Bálcãs eram considerados o ponto mais instável da Europa. A desintegração do Império Otomano e o avanço dos nacionalismos criaram um ambiente explosivo. Sérvios, bósnios, croatas, albaneses e outros grupos étnicos disputavam território e identidade, muitas vezes apoiados por grandes potências. Como afirmou o historiador francês Marc Ferro, “os Bálcãs eram o reflexo mais sensível das tensões do Velho Mundo” (FERRO, 1992, p. 47).

Uma Geração Perdida

O impacto da guerra foi devastador. Intelectuais, artistas e operários se viram arrastados para o front. Universidades foram esvaziadas. Cemitérios, preenchidos. Segundo Stefan Zweig, que viveu o período, “o mundo da segurança desaparecera” (ZWEIG, 1943). A Primeira Guerra encerrou a chamada Belle Époque e mergulhou o mundo em uma era de incertezas.


Referências 

FERRO, Marc. A Grande Guerra: 1914–1918. São Paulo: Ática, 1992.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios: 1875–1914. São Paulo: Paz e Terra, 1989.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX (1914–1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
KENNEDY, Paul. Ascensão e Queda das Grandes Potências. Rio de Janeiro: Campus, 1987.
LENIN, Vladimir. Imperialismo: fase superior do capitalismo. São Paulo: Global, 1986.
MOSSE, George. A Imagem do Homem: a masculinidade e a cultura da guerra. São Paulo: UNESP, 1990.
OWEN, Wilfred. Dulce et Decorum Est. 1917.
ZWEIG, Stefan. O Mundo de Ontem: memórias de um europeu. São Paulo: José Olympio, 1943.

Como Fazer um Trabalho Manuscrito nas Normas da ABNT

Um guia prático e descomplicado para estudantes

Fazer um trabalho escolar pode parecer complicado, especialmente quando surgem as temidas “normas da ABNT”. Mas calma! Neste espaço, você vai encontrar orientações claras e simples para montar o seu trabalho manuscrito do jeitinho que as escolas pedem — e sem dor de cabeça.

A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) criou um padrão para garantir que todos os trabalhos acadêmicos sigam uma mesma estrutura. E isso vale tanto para quem digita no computador quanto para quem escreve à mão — o famoso trabalho no papel almaço.

O trabalho deve ter:

CAPA
PÁGINA DE ROSTO
EPÍGRAFE (opcional)
DEDICATÓRIA (opcional)
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
DESENVOLVIMENTO
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
ANEXOS (conforme o caso)

Aqui no site, vamos te mostrar passo a passo:

  • Qual tipo de folha usar (spoiler: é a folha de almaço com pauta),

  • Como montar a capa,

  • O que colocar na introdução, desenvolvimento e conclusão,

  • Como fazer citações, referências e até os títulos do jeito certo.

Se você é estudante do ensino fundamental ou médio, ou mesmo um professor procurando um material de apoio, este guia foi feito para te ajudar a fazer bonito no seu próximo trabalho!

Vamos começar?

Modelo de Capa – Trabalho Manuscrito (ABNT)

A capa do trabalho manuscrito é a primeira impressão que o professor terá do seu trabalho, e precisa estar organizada de forma padronizada. Você vai escrever essas informações no alto da folha de almaço, centralizando cada linha, com letra legível e espaçamento de uma linha entre elas.

 O que deve conter na capa:

  1. Nome da escola

  2. Seu nome completo

  3. Título do trabalho

  4. Disciplina

  5. Nome do(a) professor(a)

  6. Série ou ano

  7. Cidade

  8. Ano letivo


Exemplo de capa manuscrita (em ordem):




Dica importante:

  • Use letra de forma (letra de imprensa) ou letra cursiva legível, sem rasuras.

  • Escreva tudo com caneta azul ou preta.

  • Não use lápis na capa.


Folha de rosto (opcional)

Se seu professor pedir, a folha de rosto é igual à capa, mas você vai acrescentar o nome do professor e da disciplina. Essa folha também é centralizada.

Exemplo de folha de rosto:


EPÍGRAFE (opcional)

A epígrafe é uma frase, citação ou trecho de um livro, música, discurso ou poesia que tem relação com o tema do seu trabalho. Ela vem logo no início do trabalho, antes da introdução (geralmente na folha seguinte à capa).

Para que serve?
Serve para refletir o assunto do seu trabalho e chamar a atenção do leitor com algo bonito ou profundo.

Como escrever?
Coloque a frase centralizada na página.

Embaixo, à direita, escreva o autor.

Exemplo de Epígrafe:


DEDICATÓRIA (opcional)

A dedicatória é uma parte afetiva do trabalho onde o aluno pode dedicar o conteúdo a alguém especial, como pais, amigos, professores ou colegas. Ela também é opcional e vem após a epígrafe (ou logo após a capa, se não tiver epígrafe).

Para que serve?
Para demonstrar carinho, gratidão ou homenagem a quem foi importante na sua vida ou no processo de fazer o trabalho.

Como escrever?
Comece com “Dedico este trabalho a...” ou "Aos..."

Escreva no máximo um parágrafo curto, com sinceridade.

Exemplo de Dedicatória:


Sumário

É a lista com os títulos e páginas do seu trabalho. Você pode fazer assim:


Introdução ..................................... pág. 1  

Desenvolvimento .......................... pág. 2  

Conclusão ..................................... pág. 4  

Referências .................................... pág. 5

Exemplo de Sumário:


Introdução

Aqui você explica qual é o tema, o objetivo do trabalho e o que será abordado. É tipo uma “apresentação” do que vem pela frente. 

Exemplo de Introdução:


Desenvolvimento

É a parte principal! É onde você escreve tudo que pesquisou, dividindo em tópicos se quiser. Traga informações, exemplos, reflexões e explique com suas palavras.

Exemplo de Desenvolvimento:



Conclusão

Aqui você resume as ideias principais e pode dar sua opinião sobre o tema (se for permitido). É o “fechamento” do seu trabalho.

Exemplo de Conclusão:


Referências (as fontes que você usou)

No final, é importante dizer onde você encontrou as informações. Pode ser livro, site, vídeo etc. Escreva assim:

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.  

BRASIL ESCOLA. Cidadania. Disponível em: www.brasilescola.uol.com.br. Acesso em: 16 jul. 2025.

Exemplo:


Como escrever (formato manuscrito)

  • Papel: use folha almaço (pautada), escrevendo apenas de um lado.

  • Caneta: azul ou preta. Escreva com letra legível, nem muito pequena nem muito grande.

  • Parágrafos: dê um pequeno espaço no começo de cada parágrafo (2 cm da margem).

  • Títulos: escreva centralizados, com letras maiores e destaque (sublinhados ou em letra de forma).

  • Numeração das páginas: coloque no canto de cima à direita (a partir da introdução).


Dicas importantes

  • Antes de começar, planeje o que vai escrever. Faça um rascunho.

  • Evite rasuras, folhas amassadas ou sujas.

  • Revise a ortografia e gramática.

  • Capriche! Um trabalho bem-feito mostra dedicação.


Seguindo essas orientações, seu trabalho vai ficar muito mais bonito e organizado!
Se tiver dúvida, peça ajuda ao seu professor ou professora.
Boa escrita e bom estudo!


segunda-feira 07 2025

Civilizações da Mesopotâmia


 Ao ouvir falar sobre as “civilizações antigas”, é comum que pensemos primeiro nos egípcios com suas pirâmides majestosas. No entanto, muito antes do esplendor de Cleópatra ou dos faraós, a história da humanidade já era profundamente marcada por povos que habitaram uma região fértil e estratégica entre dois rios: o Tigre e o Eufrates. A Mesopotâmia — palavra de origem grega que significa “terra entre rios” — foi o berço de algumas das mais antigas e influentes civilizações da história.

O berço das primeiras cidades

A Mesopotâmia localizava-se onde hoje está o atual Iraque, estendendo-se também por partes da Síria e do Irã. Ali, há mais de cinco mil anos, surgiram cidades organizadas, complexas e dotadas de sistemas administrativos surpreendentes para sua época. Entre os povos mesopotâmicos mais importantes destacam-se os sumérios, acádios, babilônios e assírios.

Os sumérios, considerados os primeiros a construir cidades-Estado, fundaram Ur, Uruk, Eridu e Lagash. Foram responsáveis por invenções fundamentais como a escrita cuneiforme — talvez a maior revolução intelectual da Antiguidade — usada inicialmente para registros econômicos e administrativos (KRAMER, 2006). Como aponta Vernant (1992), “a escrita surge como necessidade prática de um Estado em expansão”, e não como forma de expressão artística, ao contrário do que se costuma pensar.

A vida nas cidades: religião, política e trabalho

A sociedade mesopotâmica era fortemente teocrática: os templos ocupavam o centro das cidades, e os sacerdotes exerciam enorme poder político. Cada cidade tinha seu deus protetor, e a relação entre religião e governo era tão íntima que os reis frequentemente se apresentavam como escolhidos dos deuses ou mesmo como seus representantes diretos. A zigurate, torre-templo em degraus, simbolizava essa ligação entre o céu e a terra. 

Sítio arqueológico de Babilônia, Iraque. 

A agricultura era a base da economia, possível graças à fertilidade natural da planície aluvial. No entanto, o trabalho era organizado coletivamente e gerenciado pelas elites religiosas e políticas. Como destaca Childe (1980), essa organização social baseada no excedente agrícola permitiu a formação de uma elite urbana, além de comerciantes, escribas e artesãos especializados.

Leis, impérios e guerras

Os acádios, sob o comando de Sargão I, criaram o primeiro império da história por volta de 2300 a.C., unificando várias cidades sob um só governo. Posteriormente, os babilônios — com destaque para o rei Hamurábi (c. 1792–1750 a.C.) — deixaram como legado o famoso Código de Hamurábi, uma das primeiras tentativas conhecidas de codificar leis escritas. A célebre máxima “olho por olho, dente por dente” (HAMURÁBI, [1790 a.C.], apud LOPES, 2015) é parte dessa tradição jurídica, ainda que seu conteúdo varie conforme a posição social do acusado e da vítima.

Séculos depois, os assírios se destacaram como uma potência militar brutal e organizada, expandindo seu império com armamento avançado, estradas e uma estrutura administrativa centralizada. Eram temidos por suas táticas de guerra e políticas de dominação — mas também por sua eficiência administrativa.

Legado 

Apesar de sua antiguidade, a influência da Mesopotâmia permanece viva. Dali surgiram ideias que moldaram as bases da civilização ocidental, como a escrita, o Estado centralizado, a lei codificada, a divisão do tempo (com a hora de 60 minutos e o círculo de 360 graus) e até elementos míticos que influenciaram tradições religiosas posteriores, como o dilúvio descrito na Epopéia de Gilgamesh, possivelmente uma das primeiras obras literárias da humanidade (KRAMER, 2006).

A história da Mesopotâmia, portanto, é mais que uma coleção de nomes difíceis e datas distantes. É parte fundamental da própria história do ser humano enquanto ser social, político, criador de símbolos e construtor de cidades. Ignorar esse legado é como tentar entender a casa sem conhecer seus alicerces.

Como lembra o historiador Jacques Le Goff (2003), “a memória é a matéria-prima da história”. Relembrar a Mesopotâmia é, portanto, um exercício de justiça histórica e de compreensão das raízes mais profundas da nossa civilização.


Referências

CHILDE, Gordon. Os caminhos da história. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.

HAMURÁBI. Código de Hamurábi. [c. 1790 a.C.]. In: LOPES, Luís. As primeiras civilizações. São Paulo: Contexto, 2015.

KRAMER, Samuel Noah. A história começa na Suméria. 2. ed. São Paulo: Hemus, 2006.

LE GOFF, Jacques. História e memória. 5. ed. Campinas: Unicamp, 2003.

VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. São Paulo: Difel, 1992.

domingo 06 2025

Às vésperas do abismo: o mundo antes da Primeira Guerra Mundial

 
Antes que o mundo mergulhasse em uma das maiores tragédias da história moderna — a Primeira Guerra Mundial (1914–1918) —, a Europa vivia uma tensão crescente, disfarçada por uma aparência de estabilidade. O início do século XX foi um período ambíguo, marcado por otimismo científico e progresso econômico, mas também por nacionalismos inflamados, rivalidades imperialistas e uma corrida armamentista silenciosa, porém mortal.

A paz armada e o equívoco da estabilidade

O período entre 1871 e 1914 é conhecido como Belle Époque — expressão francesa que significa “bela época” — e foi, de fato, um momento de avanços culturais, tecnológicos e científicos. As luzes de Paris, o telefone, o automóvel, os dirigíveis e a eletricidade simbolizavam um mundo novo. No entanto, por trás desse brilho modernista, a Europa se preparava para o confronto. Os países desenvolviam tecnologias de guerra ao mesmo tempo em que promoviam feiras universais celebrando o “progresso humano”. Como observa Hobsbawm (2011), essa aparente paz era sustentada por “um equilíbrio instável de alianças militares e interesses nacionais que, em última instância, não poderia durar”.

O termo paz armada resume bem essa contradição: os países europeus mantinham relações diplomáticas e tratavam de evitar guerras diretas, mas se armavam intensamente e construíam alianças defensivas que, na prática, criaram um barril de pólvora. A Alemanha de Guilherme II, por exemplo, investia pesadamente em sua marinha, desafiando a histórica supremacia naval britânica, o que aumentava o temor em Londres. França e Rússia, por sua vez, aprofundavam sua aproximação, temendo o expansionismo alemão e austro-húngaro.

Nacionalismos, imperialismos e a disputa por hegemonia

Entre os fatores de instabilidade, o nacionalismo foi talvez o mais inflamável. Nações recém-unificadas como a Alemanha e a Itália buscavam seu “lugar ao sol” (KAISER WILHELM II, apud FERRO, 1990), enquanto os grandes impérios multinacionais, como o Austro-Húngaro e o Otomano, enfrentavam o desafio de manter coesas suas populações diversas, repletas de etnias que buscavam autodeterminação. O nacionalismo eslavo nos Bálcãs, por exemplo, alimentado pela Sérvia e apoiado pela Rússia, tornou-se um foco de atrito constante com o Império Austro-Húngaro.

O imperialismo, ou seja, a política de dominação territorial e econômica sobre outras regiões, foi outro motor das tensões. A partilha da África no final do século XIX criou atritos entre potências como França, Reino Unido, Alemanha e Itália. Embora não tenha sido o estopim direto da guerra, o imperialismo criou uma cultura política agressiva, na qual a competição e a rivalidade eram vistas como naturais entre os Estados-nação. Como resume o historiador René Rémond (2003, p. 77), “o mundo da virada do século era ao mesmo tempo um mundo de alianças frágeis e ambições desmedidas”.

As alianças militares: o sistema que encurralou a paz

Entre 1882 e 1907, dois grandes blocos militares se formaram: a Tríplice Aliança (Alemanha, Áustria-Hungria e Itália) e a Tríplice Entente (França, Reino Unido e Rússia). A lógica desses acordos era de proteção mútua em caso de guerra. No entanto, isso significava que, se um único país entrasse em conflito, os demais seriam arrastados. A guerra deixou de ser uma possibilidade restrita para se tornar uma consequência quase automática de qualquer incidente diplomático.

Esse sistema de alianças fez com que uma crise regional, como foi o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando em Sarajevo, se transformasse rapidamente em uma guerra mundial. A Europa parecia estar “dormindo em pé sobre um vulcão” (REMOND, 2003, p. 84), sem perceber que a menor faísca poderia causar uma erupção global.

O culto da guerra e a crise da razão

A Europa da virada do século também cultivava um imaginário bélico. O romantismo da guerra, o heroísmo militar e o espírito patriótico eram reforçados por escolas, jornais e governos. Muitos intelectuais acreditavam que uma guerra traria “purificação moral” ou regeneração nacional. Até mesmo escritores e artistas exaltavam o conflito como uma experiência nobre.

Essa exaltação da guerra como instrumento de transformação — presente tanto no discurso nacionalista quanto em ideologias autoritárias em gestação — revelou uma profunda crise da racionalidade moderna. Como afirma Mosse (1995), “a guerra foi vista como meio de dar sentido à vida em um mundo que se tornava cada vez mais impessoal e técnico”.

O mundo que existia antes da Primeira Guerra Mundial não era, como muitas vezes se imagina, um mundo estável destruído por acaso. Ao contrário, era um mundo de potências ansiosas por poder, mergulhadas em rivalidades profundas, alianças defensivas ambíguas e uma cultura política que exaltava o conflito.

A tragédia de 1914 não surgiu do nada: foi o resultado de uma longa cadeia de causas estruturais, agravadas por decisões mal calculadas e por uma confiança exagerada nas armas e na diplomacia coercitiva. Como alerta Hobsbawm (2011), a guerra foi “a falência das elites europeias, que não souberam lidar com os desafios de seu tempo”.


Referências

FERRO, Marc. A grande guerra, 1914-1918. São Paulo: Ática, 1990.

HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios: 1875-1914. 16. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

MOSSE, George L. A nacionalização das massas: simbolismo político e movimentos de massa na Alemanha de fins do século XIX ao nazismo. São Paulo: UNESP, 1995.

REMOND, René. O século XX: das grandes esperanças às tragédias. São Paulo: UNESP, 2003.

A verdadeira história e significado do fascismo

Você, assim como eu, já deve ter se cansado de ver a palavra “fascista” ser usada de forma distorcida, leviana e até ofensiva — muitas vezes, sem qualquer relação com seu verdadeiro significado histórico. O uso indiscriminado desse termo, sobretudo em debates políticos nas redes sociais, é um grave sintoma do esvaziamento dos conceitos. Para honrar a memória daqueles que sofreram sob regimes fascistas e para respeitar os fatos históricos, é necessário abordar esse tema com seriedade.

Uma questão de responsabilidade histórica

Fatos não se dobram a opiniões. A compreensão do fascismo exige distanciamento crítico e embasamento rigoroso. Neste artigo, basearei a análise em fontes primárias e secundárias, sobretudo na obra "A doutrina do Fascismo", escrita por Benito Mussolini em colaboração com Giovanni Gentile (MUSSOLINI; GENTILE, 1935). Não se trata aqui de opinião pessoal, mas da exposição de dados históricos conforme registros documentais.

Linha do tempo: A ascensão de Mussolini

Benito Mussolini nasceu em 1883, filho de um ferreiro socialista e de uma professora. Em 1901 formou-se como professor de ensino primário, mas sua verdadeira paixão era a revolução. Em 1902 fugiu para a Suíça para escapar do serviço militar, onde teve contato com líderes socialistas, inclusive Vladimir Lenin.

Entre 1910 e 1914, tornou-se uma figura influente no socialismo italiano, atuando como secretário do Partido Socialista em Forlì e redator do jornal Avanti. Contudo, durante a Primeira Guerra Mundial, rompeu com a linha pacifista do partido e passou a defender a entrada da Itália no conflito. Essa mudança custou-lhe a expulsão do partido. Em resposta, fundou o jornal Il Popolo d’Italia, com viés nacionalista e revolucionário.

Em 1919 fundou o grupo "Fasci di Combattimento", que mais tarde se transformaria no Partido Nacional Fascista, fundado oficialmente em 1921. Sua ascensão culminou na chamada Marcha sobre Roma (1922), com apoio de milícias paramilitares conhecidas como camisas negras. Em 1925, Mussolini assumiu plenos poderes como Duce, instaurando a ditadura fascista na Itália.

A ditadura fascista: repressão e totalitarismo

A partir de 1925, os traços autoritários do regime tornaram-se evidentes: partidos opositores foram banidos, a imprensa foi censurada, e o poder judiciário foi instrumentalizado pelo Estado. A pena de morte foi restaurada, e tribunais especiais foram criados para punir adversários políticos. Em 1939, a Câmara dos Deputados foi extinta, substituída por um conselho fascista.

A juventude italiana foi mobilizada por meio de organizações estatais, que buscavam moldar os valores das crianças e adolescentes conforme a ideologia do regime. O lema era claro: “Crer, obedecer e combater” — exaltando o Estado acima da família e da fé.

O conceito de fascismo segundo Mussolini

Mussolini escreveu:

“A guerra foi revolucionária, no sentido de que com um jorro de sangue mandou embora o século da democracia, o século do número, o século das maiorias e das quantidades” (MUSSOLINI, 1935, p. 12).

Essa afirmação demonstra o desprezo do fascismo pelas instituições democráticas e pelos princípios do liberalismo. A visão fascista era reacionária, antiliberal, antiparlamentar, antidemocrática e antissocialista. Como observou o filósofo Rafael Nogueira, é necessário contextualizar os conceitos históricos para compreendê-los corretamente:

“A partir do momento em que lemos um texto que está relacionado a algum aspecto histórico, é necessário que os conceitos sejam usados de forma contextualizada à época para entendermos o que eles queriam dizer com isso” (NOGUEIRA, 2020).

Origem do termo e seu símbolo

A palavra "fascismo" deriva de fasci, que significa “feixe” em italiano. Na Roma Antiga, o fasces era um símbolo de autoridade — um machado cercado por varas de madeira, indicando união e poder. Era utilizado pelos magistrados como emblema do poder de punir. Em meados do século XX, o termo passou a representar os movimentos revolucionários que buscavam combater, com violência, seus inimigos políticos.

Contexto histórico: crise do liberalismo

O início do século XX foi marcado por forte rejeição ao liberalismo econômico. A crise de 1929 intensificou a descrença nas democracias liberais, criando espaço para regimes autoritários como o fascismo, o nazismo e o stalinismo. Embora com ideologias distintas, essas formas de governo compartilham elementos fundamentais:

  • Líder carismático e autoritário;

  • Partido único;

  • Culto à personalidade;

  • Controle da economia;

  • Supressão da liberdade de imprensa;

  • Doutrinação educacional;

  • Violência institucionalizada.

Fascismo, comunismo e nazismo: primos totalitários

Fotomontagem: Mussolini, Stalin e Hitler

Apesar das diferenças ideológicas, os regimes fascista, nazista e comunista apresentaram características semelhantes: totalitarismo, centralização do poder, repressão à dissidência e supressão de liberdades civis. Mussolini sintetizou bem o espírito do fascismo ao afirmar:

“Tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado”  

(MUSSOLINI, 1935, p. 22).

Essa frase ilustra a essência totalitária do regime, que pretende controlar todos os aspectos da vida social, cultural e econômica.

Conclusão: lições da História

Mussolini iniciou sua trajetória política como socialista revolucionário, com forte influência do marxismo. No entanto, rompeu com o internacionalismo socialista para fundar um regime nacionalista, que rejeitava tanto o liberalismo quanto o comunismo. Sua proposta era um Estado forte, absoluto e autoritário, que se sobrepunha ao indivíduo e à sociedade civil.

O uso banalizado do termo fascismo revela não apenas ignorância histórica, mas também desonestidade intelectual. A história deve ser tratada com seriedade, pois relativizá-la é abrir espaço para os erros do passado retornarem sob novas roupagens.

A internet, ao democratizar o acesso ao conhecimento, oferece uma oportunidade inédita: aprender com profundidade, ir além dos memes e dos rótulos. Só não aprende quem não quer.


Referências

MUSSOLINI, Benito; GENTILE, Giovanni. A doutrina do Fascismo. 1. ed. Firenze: Editore Firenze, 1935.
NOGUEIRA, Rafael. Fascismo: conceitos, origens e distorções. São Paulo: Vide Editorial, 2020.

Dostoiévski e a crítica existencial ao socialismo: o preço da utopia

Fiódor Dostoiévski, romancista russo do século XIX, é conhecido por mergulhar nas profundezas da alma humana. Sua crítica ao socialismo não ...