A Revolução Russa de 1917 foi um dos acontecimentos mais impactantes do século XX, com repercussões políticas e ideológicas que se estenderam por todo o planeta. No entanto, esse processo revolucionário não brotou de forma repentina. A Rússia dos czares já era, há décadas, um barril de pólvora prestes a explodir. O que havia por trás do grito por terra, pão e paz era uma combinação explosiva de autoritarismo, desigualdade, frustração política e falência econômica.
O império czarista: tradição, rigidez e atraso estrutural
Durante séculos, a Rússia foi governada sob um regime absolutista liderado pela dinastia Romanov. No início do século XX, o czar Nicolau II reinava sobre um vasto império que mantinha estruturas medievais, tanto no campo quanto na política. Enquanto as potências europeias modernizavam suas economias e sistemas políticos, a Rússia permanecia agrária e aristocrática.
O historiador marxista Eric Hobsbawm lembra que “a Rússia era uma das grandes potências imperiais do mundo, mas internamente estava presa a estruturas arcaicas, com uma elite nobre controlando o poder e uma massa de camponeses vivendo sob servidão quase feudal” (HOBSBAWM, 1995, p. 76).
O economista e historiador Alexander Gerschenkron argumenta que o atraso econômico da Rússia não era apenas técnico, mas institucional: “a rigidez das instituições czaristas impediu o país de realizar uma transição gradual ao capitalismo, abrindo espaço para soluções extremas” (GERSCHENKRON, 1962, p. 11)
Mesmo com o início tardio da industrialização, as cidades russas — como Moscou e Petrogrado — passaram a concentrar uma classe operária urbana submetida a jornadas exaustivas e condições precárias. Esse proletariado embrionário se tornaria o combustível das greves e revoltas organizadas por sindicatos clandestinos e grupos revolucionários.
Guerras, humilhações e repressão: o caminho para a ebulição
A Guerra Russo-Japonesa (1904–1905) revelou ao mundo e ao próprio povo russo as fragilidades do império. A derrota de uma potência europeia para um país asiático foi um abalo sem precedentes. Isso se somou ao trágico episódio do “Domingo Sangrento”, em 1905, quando soldados czaristas abriram fogo contra manifestantes pacíficos.
Isaiah Berlin, historiador conservador e estudioso da cultura russa, afirma que “a Revolução de 1905 foi um aviso ignorado pela monarquia: um ensaio geral do que viria a acontecer em 1917” (BERLIN, 2006, p. 104). Ainda que o czar tenha criado a Duma, suas limitações práticas mantiveram o caráter autocrático do regime.
Como aponta Richard Pipes (1990), o poder do czar na Rússia não era meramente político: ele possuía um caráter sacral, associado a uma visão religiosa da autoridade. A derrocada do czarismo, portanto, representou mais do que uma transformação política — foi o fim de uma estrutura espiritual que sustentava a identidade coletiva russa. Isso mostra que a crise de 1917 envolveu também uma ruptura simbólica e cultural profunda.
O crescimento das ideias revolucionárias
Em meio à insatisfação, surgiram e se fortaleceram grupos políticos clandestinos, como o Partido Operário Social-Democrata Russo, dividido entre mencheviques e bolcheviques. Lenin, líder destes últimos, defendia uma revolução conduzida por uma vanguarda organizada e decidida.
Outro grupo relevante foi o Partido Socialista Revolucionário, com base camponesa e inclinação para a luta armada. Greves, atentados e protestos tornaram-se parte do cotidiano urbano russo, especialmente nas capitais.
Rosa Luxemburgo, militante e teórica marxista, escreveu que “a situação russa antes de 1917 era uma tempestade prestes a desabar — não por causa de uma conspiração política, mas pela miséria concreta do povo” (LUXEMBURGO, 2001, p. 59).
A Primeira Guerra Mundial e o colapso definitivo
A entrada da Rússia na Primeira Guerra Mundial, em 1914, agravou todos os problemas já existentes. O exército russo, mal treinado e mal equipado, sofreu pesadas derrotas. As baixas se contavam aos milhões. O abastecimento urbano entrou em colapso, a inflação disparou e a fome se espalhou.
O historiador conservador Niall Ferguson observa que “a guerra destruiu a legitimidade do regime czarista não apenas por suas derrotas militares, mas por sua incompetência administrativa e insensibilidade política” (FERGUSON, 2008, p. 184).
A crise culminou na Revolução de Fevereiro de 1917, que depôs o czar e instituiu um governo provisório frágil, que também não resistiria por muito tempo. A instabilidade gerada pavimentaria o caminho para a Revolução de Outubro.
Conclusão
O que aconteceu em 1917 foi a consequência de um processo longo, enraizado em estruturas sociais desiguais, repressão política e frustrações populares. A Revolução Russa não foi obra de um dia nem de um partido, mas o desenlace inevitável de uma crise acumulada durante séculos. Como lembra o historiador Nicolas Werth, “o império dos czares, ao tentar sobreviver pela força, cavou a própria sepultura” (WERTH, 2004, p. 39).
Referências
BERLIN, Isaiah. Pensadores russos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.FERGUSON, Niall. A guerra do mundo. São Paulo: Planeta, 2008.
GERSCHENKRON, Alexander. Economic Backwardness in Historical Perspective. Cambridge: Harvard University Press, 1962.
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
PIPES, Richard. História concisa da Revolução Russa. Tradução de T. Reis; revisão de tradução por Bruno Gomide e Maria Luiza Brilhante de Brito. Rio de Janeiro: Record, 1997.
LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou revolução?. São Paulo: Centauro, 2001.
WERTH, Nicolas. A história da União Soviética. São Paulo: Editora Ática, 2004.
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