Fiódor Dostoiévski, romancista russo do século XIX, é conhecido por mergulhar nas profundezas da alma humana. Sua crítica ao socialismo não parte da economia ou da política em si, mas de algo mais radical: a negação da liberdade interior do ser humano. Para Dostoiévski, o problema do socialismo não é apenas o seu projeto político, mas o tipo de homem que ele tenta construir — e o que ele está disposto a destruir no caminho.
Em obras como Os Demônios e Notas do Subterrâneo, o autor denuncia o espírito revolucionário que animava certos círculos socialistas russos de sua época. Para ele, o socialismo moderno é uma tentativa de engenharia da alma humana, onde tudo deve ser submetido à lógica da igualdade absoluta, do controle racional da sociedade e da extinção do sofrimento. No entanto, esse projeto utópico, segundo Dostoiévski, carrega em si uma negação da essência do ser humano: o livre-arbítrio, o desejo, o erro, a transcendência.
Em Notas do Subterrâneo (1864), ele escreve, com ironia e acidez, sobre a visão científica e determinista do homem que os socialistas alimentavam:
"Dizem que o homem faz tudo por interesse próprio. Mas... e se ele quiser fazer algo contra o seu próprio interesse, só para provar que é livre?"
Essa frase sintetiza seu incômodo: o socialismo constrói um mundo onde o homem deixa de ser um ser moral e espiritual para se tornar uma engrenagem previsível da sociedade ideal.
Dostoiévski percebia que os idealistas revolucionários — muitos dos quais influenciados por Marx e seus contemporâneos — estavam dispostos a abolir Deus, a tradição, a liberdade e até o sofrimento, para alcançar o paraíso terrestre. Mas ao fazer isso, eles, segundo ele, matam a alma humana. Em Os Demônios (1872), ele mostra como jovens idealistas, seduzidos por ideologias totalizantes, acabam mergulhados em violência, cinismo e desespero. O romance é, ao mesmo tempo, uma tragédia e uma profecia do que viria a ser o século XX.
Para Dostoiévski, sem Deus, tudo é permitido — essa máxima, atribuída ao personagem Ivan Karamázov, é o núcleo de sua crítica. O socialismo, ao tentar substituir a religião por uma nova moralidade laica e igualitária, cria um vazio espiritual. O homem se torna apenas um ser econômico, social, material — mas não mais uma alma imortal, livre para amar, crer e até sofrer com dignidade. A liberdade, para Dostoievski, é mais valiosa do que qualquer promessa de igualdade ou conforto.
Sua visão contrasta frontalmente com a do marxismo. Enquanto Marx vê a história como uma luta de classes que culminará em uma sociedade sem exploração, Dostoiévski vê a história como uma luta entre o bem e o mal no coração humano, algo que não pode ser resolvido por sistemas ou estruturas, mas apenas por uma conversão interior. Em vez de uma revolução social, ele aposta em uma redenção espiritual.
É por isso que sua crítica ao socialismo é tão profunda e inquietante: não se trata apenas de discordar de suas propostas econômicas, mas de alertar que, ao tentar salvar a humanidade pela força das ideias, o socialismo pode acabar esmagando aquilo que nos faz humanos. Em nome do bem coletivo, sacrifica-se o indivíduo; em nome da paz, cria-se o controle; em nome da justiça, destrói-se a misericórdia.
Mais de um século depois, a advertência de Dostoiévski continua atual: nenhuma utopia política pode substituir a complexidade da alma humana. A tentativa de construir o céu na terra, se feita à custa da liberdade interior, corre o risco de nos entregar um novo tipo de inferno.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Notas do Subterrâneo. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2009.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Demônios. Tradução de Boris Schnaiderman. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamázov. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2011.
FRANCO, Afonso Arinos de Melo. O Homem e a Revolução em Dostoiévski. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954.
PIPES, Richard. Russia under the Old Regime. New York: Penguin Books, 1990.
BERDIAEV, Nicolas. O Espírito da Revolução. São Paulo: É Realizações, 2014. (Obra original: 1937)
FRANK, Joseph. Dostoevsky: A Writer in His Time. Princeton: Princeton University Press, 2010.
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